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  • Foto do escritorIvone Benedetti

Minha leitura de Dobras da noite







Dobras da noite Chico Lopes Ed. Instituto Moreira Salles, 2004




O conto não é um gênero fácil. Se em qualquer forma de narrativa o conflito é indispensável, no conto ele é o caroço duro, o núcleo rijo, o hard core que o constitui por inteiro. Se não for assim, pode virar crônica insípida, seja do cotidiano, seja das galáxias. E aí não importa se o conto é curto, médio ou longo, porque não é nem tamanho o que caracteriza um conto. É possível escrevê-los em qualquer forma e é possível escrevê-los bons ou ruins em qualquer extensão.

Chico Lopes deve saber disso. Seus contos são densos e tensos. O conflito, neles, aparece já nas primeiras linhas. As personagens são lançadas diante do leitor sem muitas explicações, ou melhor, o leitor é posto no meio da briga sem apresentações. É muito frequente chegar à terceira página e precisar voltar à primeira para situar a ação que se precipitou e nos escapou. Na releitura, percebe-se: está tudo lá, nosso olhar foi apressado demais.

O tom é soturno. Porque Chico se enfia pelas dobras muitas vezes inextricáveis de noites interiores; diferentes, mas com um ponto em comum: a solidão. Os conflitos frequentemente ganham corpo através de triângulos. Dos nove contos, cinco têm triângulos explícitos: O manco, Trio, O vestido lilás, Belmiro agoniza, As vozes. Não tão explícitos em: Os senhores do lago, A sala acesa, A many splendored thing, Cavalo e sombra, mas ligeiramente discerníveis nas dobras, ou pelo menos passíveis de desenvolvimento, caso o autor quisesse abrir luzes sobre certos aspectos.

Chico parece ter gostado da fórmula. Aliás, o triângulo é a forma exata da solidão desconfiada, cabreira: não há paralelismo possível, e cada um dos elementos desconfia que os outros dois aos quais ele se une se unem também em algum canto longe dele. Formado por dois homens e uma mulher em Trio e Vestido lilás, em O manco, Belmiro agoniza e As vozes, é formado por filho, mãe e um terceiro (que, no caso de Belmiro agoniza, é o próprio pai).

A predominância das vozes masculinas no foco narrativo colabora para o tom grave. Porque elas frequentemente narram os mecanismos do aniquilamento humano, voluntário ou involuntário, quando não da autodestruição. Patente esta em O manco, Trio e Vestido lilás, entremostra-se em todos os outros contos, de uma maneira ou de outra.


Mas sem dúvida Chico atinge sua melhor forma em A many splendored thing. Ao lado deste, eu poria Cavalo e sombra.


A grande beleza do primeiro está na maneira de abordar o homossexualismo, não como conceito, mas como homossexualidade em definição num ser. A personagem Vitinho mostra-se pelas linhas de Chico como bela alma feminina enclausurada em corpo masculino, sem ter atingido ainda maturidade para alcançar plena consciência de sua condição; graças a isso, a narrativa passa ao largo do drama e envereda no caminho da tragédia, gênero em que as personagens são guiadas para o abismo por forças que elas não têm condições de conhecer, muito menos de dominar. A forma de narrar provoca tal empatia, que na última linha o livro deve ser fechado: falta fôlego para a continuação da leitura. O conto cala. Foi dos melhores que li até hoje. Chico conseguiu perfeito equilíbrio entre indícios singelos e descrições cruas, de tal modo que o resultado final não foi a pieguice nem a brutalidade, embora ali estejam todos os elementos para qualquer uma das duas. O título do conto é extremamente evocativo. Vitinho se identifica com Love is a many splendored thing, canção e título de um filme que por aqui ficou conhecido como Suplício de uma saudade, frisson das meninas românticas da época, enquanto Ivo, o viril professor de educação física que o encanta, canta Adelino Moreira nos bares da cidade. E quem não se lembra que Adelino Moreira, compositor quase exclusivo de Nelson Gonçalves, compunha um gênero considerado machista e de mau gosto pela vanguarda, em pleno auge da bossa-nova? Desse modo, Chico retrata, simboliza, sem precisar descrever, a irremediável desesperança de Vitinho, que não se sabe desesperançado.


Cavalo e sombra é um conto mais enigmático. Há alguma parecença entre ele e Vozes, não no entrecho, mas na presença do mistério. Distingue-se por focalizar uma personagem positiva, construtiva, modelo de homem que o narrador destaca de um fundo pobre de espírito, incapaz de entendê-lo. Pela primeira vez, o triângulo entremostrado ganha luzes porque desejado: no contraste entre Celestino e o pai do narrador, aquele ganha contornos heroicos, mas não dos que seriam perceptíveis à mãe, mulher tacanha encerrada em seus preconceitos. Ao contrário de outras personagens, Celestino não se destrói: vive estoicamente a doença da morte como quem se curva ao destino inexorável, buscando uma última toca, como os animais. Porque Celestino é um ser telúrico e, talvez por isso mesmo, destinado ao céu, como quer indicar seu nome.


Cavalo e sombra é um conto escrito, parece, de jorro, ao sabor do sentimento. Por isso envolve o leitor em sua torrente. A impressão é de que nele Chico alargou a mão, bateu as asas, alçou voo. Chegou ao humor: Celestino estabelecera-se na cidade por vontade da filha, “ ‘louca por moço loiro, de olho azul verdoengo…’, e rápido fora engravidada por um Bonelli pedreiro.”


Chico continua escrevendo. A impressão é que do húmus de Dobras da noite ainda há de brotar muita coisa boa. Já no prelo, pela Nankin, seu próximo livro, com 13 contos, que se chamará Hóspedes do vento ou Terceira porta.

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