Não é a primeira vez que me acontece. Leio dois livros seguidos e encontro neles pontos comuns que me dão vontade de explorar por me parecer que do encontro desses pontos podem nascer observações mais ricas do que da consideração de cada um dos livros separadamente. No caso presente os dois livros são Quarenta dias, de Maria Valéria Rezende, e Corpos Furtivos, de Chico Lopes.
Para evitar que este texto fique muito obscuro para quem não leu as duas obras, aí vai uma breve sinopse de cada uma.
O livro de Maria Valéria, aliás ganhador do Jabuti /2015, conta a história de uma cinquentona que é coagida a se mudar de João Pessoa para Porto Alegre por sua filha, professora universitária bem-sucedida que quer a mãe por perto para cuidar de netos projetados e ainda não consumados. A mãe, revoltada contra esse desarraigamento a que não pôde resistir, aproveita uma viagem da filha e do genro para se atirar à rua em andanças infindas, pretextando cumprir a incumbência de achar um homem desconhecido, certo Cícero Araújo, da Paraíba, cuja mãe chora por seu sumiço. O livro conta a epopeia vivida nesses quarenta dias de buscas.
O livro de Chico Lopes conta também o périplo de uma cinquentona (mas solteira e sem filhos) que está sempre fugindo das peias de uma irmã puritana, em busca de um homem cujo nome desconhece pelas ruas de uma cidade do interior de São Paulo. Como o ambiente de sua casa lhe parece sufocante, grande parte da narrativa se passa na rua, em andanças não tão infindas quanto as da personagem de Maria Valéria, mas compulsivamente reiniciadas a cada dia.
Pelas linhas acima já é possível perceber que, no atacado, as duas narrativas têm, tematicamente, muito em comum. Passo agora a uma análise mais pormenorizada, para pescar outros tipos de relação.
É na psicologia da personagem principal que os dois percursos se distinguem, mas de uma forma peculiar, como se fossem duas linhas que ora se cruzam, ora se afastam, sem nunca divergirem. Por exemplo, as duas têm em comum o fato de monopolizarem os relatos. Nenhum dos dois textos dá espaço maior a personagens secundárias. Outro dado comum: as duas são professoras, mas a personagem de Maria Valéria (Alice) e a de Chico (Eunice) se distinguem pelo fato de que a primeira gosta do que faz e se desgosta por ter de se afastar de suas atividades, enquanto para a segunda suas tarefas profissionais são indiferentes. Registro de passagem que aos olhos mais atentos não deve ter escapado que os dois nomes rimam.
Ora, que efeito produzem sobre o leitor essas diferenças? Enquanto o leitor de Maria Valéria acompanha o desenrolar emocionante das aventuras de uma mulher forte que, enredada por um momento nas malhas da coação, decide sair delas se atirando ao mundo como um ato de revolta, o leitor de Chico Lopes acompanha a busca emocionante e desesperada de uma mulher frágil, enredada para sempre nas teias de um desejo impossível de saciar. A primeira desperta entusiasmo e, em muitos pontos, hilaridade; a segunda, compaixão de cabo a rabo.
Um aspecto que impressiona pela simetria é a consciência social de cada uma dessas duas personagens. Explico por que usei a palavra simetria. A Alice de Maria Valéria é nordestina e vai morar numa cidade onde é vista como elemento estranho e subalterno (os nordestinos vão lá sobretudo para trabalhar na construção). A Eunice de Chico Lopes lamenta (e isso já nas primeiras páginas) o fato de sua cidade estar perdendo o caráter que tinha antes de ser invadida por levas de nordestinos. Enquanto Alice precisa enfrentar o estranhamento que causa nos italianos de Porto Alegre, Eunice, descendente de italianos, estranha os forasteiros que, provocando o repentino crescimento de sua comunidade, acabam por tornar anônimos aqueles que antes se impunham pela força de nomes tradicionais.
E aqui faço um parêntese para comentar a extrema perspicácia com que Chico Lopes capta essa mudança de paradigma nas pequenas cidades do interior de São Paulo, que incham em virtude do cruel fenômeno de êxodo rural, trazendo para o meio urbano pessoas que certamente de sentem tão desarraigadas quanto Alice em Porto Alegre.
E, na pena dos dois escritores sensíveis, essas características diferentes e simétricas das duas personagens são responsáveis por suas reações simetricamente diferentes em relação aos moradores de rua, esses eternos extirpados: enquanto Alice encontra neles uma espécie de redenção, para Eunice eles são ameaça e consumação da ruína.
Finalmente, a grande diferença entre essas duas obras está na linguagem, nos elementos formais privilegiados. Nesse aspecto, Maria Valéria Rezende é mais sofisticada. Vale-se da forma “diário”, texto que vai sendo escrito à mão num caderno que é uma das pouquíssimas coisas que conseguiu carregar consigo ao sair de sua casa de João Pessoa. Esse caderno é cor de rosa e tem a boneca Barbie na capa. Com Barbie a narradora dialoga ao longo de todo o texto. A narrativa começa no retorno do périplo por Porto Alegre, e os acontecimentos narrados transcorrem em dois passados (o de João Pessoa e o de Porto Alegre), além de um presente pós-périplo (o que é possibilitado pela forma diário). Mais que isso, o nome Alice remete ao conto de Lewis Carroll. Isso fica explícito em várias menções da própria narradora e também por alguns dados implícitos: Alice deixa de lado, como que esquecida, a chave de um apartamento ao qual não quer voltar e barafusta para o outro lado do espelho, imerge entre gaúchos especularmente diferentes dela, andando por quarteirões e bairros que não deixam de ter similaridade com um tabuleiro de xadrez: o explícito, da decoração do sofisticado apartamento que lhe deram, e o implícito, do conto fabuloso de Carroll. Com isso, fugindo daquele tabuleiro de xadrez que lhe destinaram contra a sua vontade, ela envereda por um labirinto de ruas e quarteirões em busca de um destino que ela mesma não sabe onde está. Seu Cícero Araújo é a coroa postiça que ela quer conquistar como uma espécie de sucedâneo de sua independência perdida. O leitor passa o tempo todo esperando que, no fim, ela consiga se tornar rainha de seu próprio destino.
E aqui recomendo aos futuros leitores que atentem para a sutileza do último parágrafo, que dá a pista do destino no qual Alice desembocou.
Essa sofisticação narrativa é digna de nota, muito mais do que o fluxo textual que atropela a pontuação no ritmo da respiração ofegante de quem conta à pressa uma fuga desabalada. Fluxo que vem se tornando constante em nossa literatura contemporânea. Quase um cânone já. No caso do romance de Maria Valéria, tem motivação clara, embora não tenha deixado de me ocorrer que a escrita cursiva num diário inclui alguns arrependimentos e riscos em cima de palavras. Como, por exemplo, fez Umberto Eco no texto escrito por Baudolino aos quatorze anos, que inicia o romance homônimo.
Chico Lopes segue uma linha narrativa mais convencional. Sua escrita, como já tive oportunidade de constatar em outros livros seus (Dobras da noite e O estranho no corredor, comentados neste mesmo blog), é de uma sutileza pouco comum no aprofundamento psicológico. De fato, é admirável a competência com que ele descreve o desejo feminino, misto de idealização e necessidade física, coisas que não raro entram em insolúvel conflito. Como a narrativa é em terceira pessoa, Chico se isenta de escarafunchar sentimentos interiores com obstinação intimista, mas, apesar de narrar com verve masculina, demonstra ser um observador arguto, capaz de captar impulsos, apetites, temores que em muitos casos passam despercebidos às próprias mulheres.
A edição de Quarenta dias é da Alfaguara. A de Corpos furtivos é da Penalux.
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