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2016: por que aquilo deu nisso?

  • Foto do escritor: Ivone Benedetti
    Ivone Benedetti
  • 3 de jan. de 2017
  • 7 min de leitura

Atualizado: 13 de dez. de 2020


Nas redes sociais, muitos dos comentários sobre os últimos crimes que abalaram a opinião pública brasileira enfatizam palavras como misoginia, homofobia, conservadorismo, fascismo etc. Motivo para isso há. A violência autoritária perpetrada por pessoas pertencentes ou postulantes à classe média marcou três episódios recentes: o assassinato do filho por um pai em Goiânia por divergências políticas, o assassinato de um ambulante que tentou defender um travesti em São Paulo e o assassinato de toda uma família em Campinas por um homem que deixou uma carta cheia de considerações políticas em meio às pessoais.


É também frequente falar-se do ódio em que a sociedade brasileira anda mergulhada de uns tempos para cá, afirmando-se que esse ódio é fomentado pela mídia. Motivos para essa afirmação também há e muitos. Mas quem diz isso costuma esquecer um elemento um bocadinho mais complexo, que é a dialética entre a sociedade e a mídia, de tal modo que as duas se realimentam mutuamente num processo contínuo. Exemplo disso é o grande sucesso dos programas policiais que defendem pena de morte para os “bandidos”. E eles não são de hoje. Começaram a proliferar há pelo menos cinco décadas, pelas minhas contas. Quer dizer, o próprio meio sobre o qual eles agem foi que lhes deu origem. Certamente não é a maioria da população que se escandaliza com os descalabros que aqueles comentaristas soltam todos os dias. E a popularidade deles, inclusive como potenciais candidatos a cargos políticos, é enorme. A troca sadomasoquista entre esses programas e seus espectadores vai muito além do que em geral se propala. Deveria ser da alçada do divã psicanalítico.


Do ponto de vista político, é possível dizer que nosso caldo cultural é predominantemente feito, sim, da cultura hegemônica despejada do alto das antenas de televisão. Cultura hegemônica nos termos de Gramsci, ou seja, dominação ideológica por parte das classes dominantes, coisa que existe e todos sabem que existe, até quem a nega. E ela existe mesmo e talvez principalmente nas programações “populares”. Porque é preciso falar com o povo numa língua que ele entenda. A veiculação pela nossa mídia do conteúdo que lhe der na telha é tremendamente facilitada pela forma como têm sido feitas as concessões dos meios de comunicação desde tempos imemoriais neste país, sem que ninguém tenha tido condições ou vontade de modificar essa realidade no sentido de estabelecer maior diversidade de fontes de informação e formação.


Na verdade, aí não está tudo. Nossa história criou outros elementos que, no choque e na fusão com essa cultura hegemônica, acabou gerando um caldo complexo demais, tão complexo que é difícil dar conta de todos os seus ingredientes.


Evidentemente, não é minha pretensão fazer isso. Minha intenção é somente alertar para coisas que entram nessa mistura, na tentativa de fugir um pouco ao discurso bipolar que tem caracterizado manifestações muitas vezes bem-intencionadas, ainda que nem sempre.


O cidadão brasileiro comum nunca foi “politizado” no sentido de participar ativamente das relações políticas de sua comunidade mais próxima. Acredito que a verdadeira politização se dá assim. Se tivesse começado por aí, se algum dia tivesse pisado o “chão” da luta política por direitos específicos, ele talvez fosse menos permeável ao clima de fofoca federal que se criou de uns tempos para cá (aliás, desde Collor). Causa-lhe muito mais indignação saber que o senador Fulano recebeu não sei quantos milhões de propina do que a paralisação das obras da estação de metrô que serviria milhares de pessoas (entre as quais ele mesmo), paralisação essa que se deu por motivos mais do que suspeitos e até certo ponto parecidos com os do senador Fulano. Não ter suado a camisa na luta por pautas concretas cria aquele sujeito que, olhando para o céu da mídia, cai no poço das mazelas da sua cidade.


Nossa história tem muito a ver com isso. Desde os tempos coloniais, criou-se por aqui uma sociedade extremamente patriarcalista e autoritária, cujos membros estão convictos de que as decisões sempre devem emanar de uma autoridade. Decidir ou opinar não é coisa da alçada do cidadão comum. Por isso mesmo este nunca ficou a par, nem que superficialmente, dos grandes grupos de interesses que agem no país e fora dele. Também nunca lhe foi dado pensar a história brasileira como um conjunto de acontecimentos que têm conexões entre si, nunca lhe foram oferecidos elementos para pensar o país organicamente, como um todo coerente. Saber fazer isso não implica ser de esquerda ou de direita. Seria interessante que tanto aqueles que se dizem de uma e de outra ponta do espectro tivessem essa habilidade. A diferença entre esquerda e direita está no privilégio dado a este ou àquele tipo de conexão entre os elementos históricos ou sociais.


Quando nascem as redes sociais, esse indivíduo não politizado começa a receber uma enxurrada diária de informações (raramente imparciais, muitas vezes inverídicas), mas não tem critérios para a análise crítica dos dados que recebe nem para a compreensão dos elos que há entre eles. No entanto, ele percebe a necessidade vital de estabelecer algum tipo de conexão nesse amontoado de coisas, caso contrário o todo vai parecer absurdamente incongruente. E então o ato de ligar os pontos é feito de maneira tão estapafúrdia que a realidade acaba parecendo mais insana do que seria sem essas conexões.


Mas voltemos à questão da autoridade. Quais são as "autoridades" atualmente reconhecidas e acatadas pelo cidadão não politizado? A meu ver, a mídia e as igrejas (sobretudo evangélicas). Se é que alguma vez a autoridade política foi acatada neste país, o vácuo que ela deixou a partir do momento em que passou a ser desrespeitada acabou sendo preenchido integralmente por essas duas instâncias. As redes sociais, parece-me, se enquadram em grande parte na categoria “mídia”, mas nem tanto. Nelas, felizmente, vigora uma diversidade muito maior do que a existente nos meios tradicionais de comunicação. Por outro lado, nelas, infelizmente, tem trânsito qualquer tipo de informação, verdadeira ou não. Seu poder de disseminar mentiras compete diariamente com o de divulgar verdades.


Tanto na mídia tradicional (com ênfase na televisão) quanto na igreja, o que se tem é um pensamento uniforme e sem possibilidade de contraditório. A igreja é assim por sua própria natureza; a mídia, pela forma como foi configurada no Brasil. O universo de alguém que se move entre essas duas instâncias passa a ser povoado por ideias inculcadas. A assimilação e interpretação do que é recebido, que antes se davam no lar ou entre amigos e conhecidos, hoje ocorre nas redes sociais, com tudo o que elas têm de caótico. Nelas, o anonimato relativo e a distância física facilitam a agressividade e a grosseria, que a proximidade antes limitava. Seja como for, a vivência “intelectual” desse cidadão típico acaba se resumindo a um conjunto restrito de ideias comungadas por todos os que o cercam, já que as redes sociais, arremedando os hábitos da convivência concreta, acabam criando grupos fechados, as tais bolhas.


A comunhão de um mesmo pensamento baseado num senso comum pode não produzir resultados indesejáveis nos períodos de estabilidade. Quando alguma crise se instala, o instinto de grei leva o indivíduo a buscar algum catalisador que faça seu grupo se mover numa mesma direção. Enfim, ele busca um sentido, um norte. E sempre aparece uma “autoridade” para lhe dar esse norte.


Nos momentos de crise, a impotência das classes trabalhadoras (demissões, desemprego, portanto força maior do patronato nas eventuais negociações) somada ao medo de degradação das classes médias acaba gerando guinadas direitistas. Isso aconteceu na década de 30 do século passado e está acontecendo agora no mundo todo. Naquela época, os regimes de feição liberal-burguesa que se mostraram incapazes de oferecer soluções satisfatórias para os impasses políticos e econômicos foram derrubados e deram lugar a regimes de forte componente autoritário e totalitário. A mesma tendência se observa hoje. Motivo suficiente para que ela não seja subestimada. Não morre a esperança de que a história ensine alguma coisa, desde que aprendida.


A tática do bode expiatório, embora não seja monopólio da direita, sempre foi empregado por ela com maestria. E não só uma vez, infelizmente. O bode expiatório é o catalisador que dá sentido ao desnorteio. Em torno dele toda uma sociedade se cristaliza sob um único comando: livre-se do bode e tudo voltará aos eixos. No Brasil, o bode expiatório atual é o PT. Não que ele não tenha dado motivos. Suas culpas são muitas. Mas é próprio do bode expiatório ser visto como repositório de todas as culpas, próprias e alheias, e às vezes mais alheias que próprias. O instrumento dessa catálise foi a Lava-Jato. Por que digo isso? Porque os juízes de Curitiba poderiam ter cumprido com mais pudor seu dever de desmantelar esquemas de corrupção. Isso se não tivessem se prestado a funcionar como agentes da catálise bode expiatório em nome sabe-se lá de que interesses. Se, por mera hipótese, tivessem agido com a imparcialidade que se espera do poder judiciário, teriam angariado o respeito de toda a população. Hoje, ao contrário, têm a idolatria de uma parte dela e a suspeita da outra, sem falar das críticas recebidas dos próprios juristas. Mas não é sobre a Lava-Jato em si que quero me estender. Só quero dizer que ela serviu de norteador aos sem-norte porque estes são incapazes de, como disse acima, distinguir os interesses que sempre há por trás de cada político, de cada partido e (por mais doloroso que seja) de cada juiz. E a conhecida idolatria a certos juízes ocorre porque os sem-norte transferem para a política as noções comezinhas de moral que aprenderam para supostamente resolverem os problemas da sua vida diária. Transferência que nunca deu certo. Porque, a partir do momento em que trata a política em termos pueris de herói-vilão, santo-demônio, bem-mal, o indivíduo na verdade está criando uma armadilha da qual nunca mais sairá. Não há muita diferença entre esse modo de pensar e os fundamentalismos religiosos. É só uma questão de grau e de circunstâncias.


O que tem tudo isso a ver com os últimos crimes?


O assassinato do filho pelo pai teve o componente político e autoritário flagrante; o da família inteira foi perpetrado por um sem-norte que entre seu ato (autoritário, entre outras coisas) e as circunstâncias políticas do momento criou uma série de nexos estapafúrdios, típico da realidade que mencionei acima. O do ambulante do metrô teve um modus operandi muito semelhante aos métodos fascistas (o uso do soco inglês, a tentativa de linchamento de um travesti, o linchamento real de uma pessoa negra do povo), a tal ponto que a polícia suspeitou logo de início que se tratasse de participantes de algum grupo neonazista. Nos três ocorre uma perigosa junção entre conflitos pessoais, com componentes patológicos, e um ambiente geral de desencanto político, descontentamento social e frustração econômica. O açulamento por parte das instituições midiáticas, religiosas e judiciárias é o fósforo nesse combustível.


Mas a tudo isso me parece útil somar mais um fator de enorme importância. A perspectiva valorizada alguns meses atrás de mudar o governo como garantia de felicidade, a proposta de alijar o bode expiatório satânico-vermelho como fundamento da redenção futura, tudo isso falhou. Deu chabu. Felicidade, redenção, nada disso aconteceu. Não houve catarse.

Nem autocrítica. Ainda que a bússola da mídia agora prometa o norte da solução para os problemas que antes ela mesma apontava como insolúveis, os sem-norte percebem que alguma coisa está errada. Há um mal-estar enorme no ar, mas falta o diagnóstico, ou melhor, falta um novo bode expiatório. Que fazer? Parece incrível, mas existe gente que não suporta essa orfandade e, entre outras coisas, mata.

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