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  • Foto do escritorIvone Benedetti

Os cus de Judas: uma questão de pulsação


Os Cus de Judas, António Lobo Antunes, Edit. Alfaguara

Há em música uma pulsação que todo ouvido percebe. Não interessa saber se o músico usou compasso simples, composto, binário, ternário, o diabo a quatro, porque o que ouvido e cérebro sacam é a pulsação, aquela que faz o pé bater, que se espalha pelo corpo e até provoca a dança, ou pelo menos o sacolejo. Nem há necessidade da batida de um instrumento de percussão para essa percepção.


O ritmo está em tudo. Existirá o não-ritmo?


Também na prosa ele está. O ritmo do escritor é aquele pulsar que fica nos nossos ouvidos quando fechamos o livro e os olhos e pousamos a cabeça no travesseiro, à espera do sono. Todos têm um. Chico Buarque, em entrevista dada em Portugal sobre Leite Derramado, disse: “Há uma cadência, um ritmo dentro de cada frase que obedece a um critério musical”. Consciente assim?


O ritmo em literatura é tão importante quanto em música, mas poucos falam disso. Meschonnic falou, ele que não conseguia pensar senão ritmicamente. O que dita esse ritmo que existe mesmo quando o próprio escritor não pensa nele? Um compasso biológico? A sua língua? Sem dúvida, em grande parte a sua língua.


Em Os Cus de Judas o ritmo é tão persistente, que eu o sentia mesmo de olhos abertos. Minha impressão é de que seus períodos não seguem a trilha da sintaxe, mas saem em aglomerados mais ou menos constantes de palavras justapostas, golfadas como as de uma artéria cortada. Conjuntos variáveis, de onze a sete sílabas, é grande a persistência em torno das dez. Golfadas que às vezes atolam em volumes heptassilábicos para depois se moldarem de outro e outro volume, afastando-se das constantes só para lembrar que é preciso voltar a elas.


Mas nem só de constâncias silábicas vive esse ritmo. Há também um ritmo sintático. Vivemos o reinado da pós-retórica. Em nossa prosa predominam as coordenadas. Em Os Cus de Judas em geral primeiro vem uma afirmação, ou soma de afirmações, a que depois se acrescentam circunstâncias com gerúndios, intrometem-se apostos, adjetiva-se com orações e arremata-se com comparativas. As temporais estão presentes porque imprescindíveis. Causais poucas. De consecutivas não me lembro. Na verdade, o que chama mesmo a atenção nesse texto são as comparações. Texto eminentemente metafórico. A metáfora é uma relação de semelhança cuja beleza está no insuspeitado da parecença. O escritor estabelece entre algumas coisas relações que só ele viu, que só ele soube verbalizar. Essa obra é um primor no gênero. A semelhança metafórica pode ser anunciada com “como”, “à maneira de”, “semelhantes a”, “à laia de” (muito usado) etc., mas pode ser enunciada por simples justaposição de palavras pertencentes a universos que costumeiramente não se tocam. Os dois processos são frequentes. Mais interessante é este último. Confesso que os comos às vezes me (perdão pelo trocadilho) incomodavam. Quando os conectivos desaparecem, os universos se fundem por extrusão, um molda o outro, formando uma terceira realidade onírica, mental, cerebral, sei lá. Poética, enfim. Como quando a morada humana, os animais do zoológico, o passado, o presente e os conceitos se unem simbionticamente em frases cadenciadas. Numa delas a própria palavra cadência brota por efusão, derramamento.


A mancha de sol da tarde trotava no soalho na cadência furtiva das hienas, revelando e escondendo os desenhos sucessivos do tapete, o relevo lascado do rodapé, o retrato de um tio bombeiro na parede, iluminado de bigodes, de que o capacete areado cintilava reflexos domésticos de maçaneta.

ou


Provavelmente, até no cemitério reina uma chocalhante actividade matinal de esqueletos de família, catando-se mutuamente os vermes num cuidado de mandris.

ou


Talvez que, palpando-me, me descubra de repente unicórnio, a abrace, e você gire os braços espantados de borboleta cravada em alfinete, pastosa de ternura…


Esta última frase, aliás, prefigura já outro momento em que o pênis se transforma em objeto pontudo, perfurante, arma enfim de um homem capaz de penetrar por ódio, tonto de ódio, como quem espeta uma faca em rixa de taberna.Afinal, segundo um vaticínio de tia, a tropa haveria de transformá-lo (a ele, narrador) em tal, ou seja, em homem. O vaticínio se enuncia no começo do livro, mas não se confirma no fim, segundo os critérios da vaticinadora, de modo que entre o sibilino desejo do começo e a frustrante constatação do fim se desenrolam as reminiscências da guerra e do homem, aquele outro homem que ele (o narrador) de fato era.


Mas não é só silábico e sintático o ritmo em Os Cus do Judas. É também narrativo. Cedo se começa a perceber que ele caminhará alternadamente de Portugal-hoje-mulher (mulher que só se faz presente pelos fáticos “entende” e “percebe” do narrador) a Portugal-anteontem-família a Angola-ontem-guerra, numa cadência mais ou menos previsível. Raros são os momentos de entrelaçamento temporal inextricável, de um acorde de tempos. Não tão raros, mas muito felizes, os momentos de passagem rápida, de modulação entre tons geográfico-temporais, como se uma pernada incomensurável permitisse resvalar de um cenário luso a outro angolano, num teatro virtual montado pelo narrador.


Uma agitação de silhuetas e de vozes borbulhou na sanzala, aproximou-se, tomou forma: os meus tios, os meus irmãos, os meus primos, o chofer da avó, afectado e delicadíssimo, os sujeitos da risca na orelha, o caseiro, o senhor doente da poltrona, fardados, exaustos, sujos, de arma ao ombro, chegavam de uma operação na mata e dirigiam-se para a enfermaria transportando, num pano de tenda entre dois paus, o meu corpo desarticulado e inerte com um garrote na coxa reduzida a um inchaço ensanguentado.


Em dois momentos o ritmo muda. No primeiro, o narrador retorna à guerra, depois de ir visitar a filha recém-nascida: o andamento se acelera, pulsa na velocidade da raiva. No segundo, dá-se a união de dois clímax, o da guerra e o da relação com a mulher interlocutora: aqui a pulsação é dolorida, a traqueia arfante, a garganta borbulhante do soldado sem rosto se justapõe à vagina, à junção úmida onde a vida começa. Nesses momentos o texto não pulsa, lateja. Latejar que livra do perigo da sempre possível monotonia.


Por aqui fico. É claro que uma obra dessas possibilitaria inumeráveis outros olhares. Limito-me.

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