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  • Foto do escritorIvone Benedetti

Cart... ilhas


Na semana passada, a propósito da cartilha do MEC, surgiu uma celeuma em torno de um assunto no qual penso há algum tempo. Como tenho cá minhas opiniões sobre ele, estou só aproveitando a ocasião e o interesse para expressá-las.


Começo pela atitude dos jornalistas, que me parece ensinar algo sobre a nossa própria. Por que eles se escandalizaram tanto com o que é dito naquela cartilha, se os desvios da norma há anos frequentam os livros didáticos, que ensinam a existência de formas coloquiais mais relaxadas ao lado de outras formais, mais cuidadas? A resposta que se costuma dar é a seguinte: até agora os exemplos usados eram de desvios praticados pelas pessoas com certo nível de escolaridade, ao passo que o desvio presente na discutida cartilha é socialmente desprestigiado.


Pode ser. Se a preocupação fosse puramente linguística, a imprensa teria dispensado antes mais atenção ao ensino do português. Por exemplo, há anos vem ocorrendo um fenômeno para o qual só os tradutores têm dado a atenção merecida. Por influência de teorias criadas pela nova geração de linguistas, em legendas da tevê paga lemos sistematicamente: a) ele/ela na posição de objeto, em lugar de o/a; b) ter em lugar de haver. Nunca nenhum jornalista se importou com isso.


Esses usos impregnam a fala das pessoas de todas as camadas sociais no Brasil, é verdade, num registro coloquial. Não estão presentes nos textos formais da grande imprensa nem nos das editoras. Mas estão em legendas, portanto em textos traduzidos, que aí cometem uma grave impropriedade, agora no campo da teoria da tradução. Explico: é tão condenável traduzir o culto pelo coloquial quanto o coloquial pelo culto. A confusão de registros num texto traduzido só pode ser fruto do total desconhecimento de noções elementares da arte ou técnica de traduzir. É tão grotesco traduzir pela norma culta o diálogo de dois elementos do submundo quanto traduzir pelo coloquial a exposição de um erudito sobre a arte no século XIX. É o que se vê diariamente, por exemplo, em canais de tevê paga, dirigidos essencialmente para uma “elite cultural” que se abstém de tais usos coloquiais em situações formais.


Para isso ninguém atenta. Mas no momento em que alguém diz: “Você pode estar se perguntando: ‘Mas eu posso falar ‘os livro?’.’ Claro que pode. Mas fique atento porque, dependendo da situação, você corre o risco de ser vítima de preconceito linguístico” — todos enxergam só “os livro” e não veem o resto. O resto, importante me parece, é o discurso do educador. Ele me lembra uma experiência pessoal. Certa vez uma mãe, na sala de espera de um consultório, querendo reprimir não sei que comportamento na filha, apontou para mim e disse a ela: “Não faça assim, faça assado, senão a moça vai ficar braba”. Dei as costas muito braba mesmo. Com a mãe.


Como dei a entender no meu primeiro artigo e agora explicito, não me parece honesto nem eficaz usar o eventual preconceito alheio para justificar um comportamento preconizado, seja ele qual for. Ou ele é válido em si, ou não deve ser preconizado. A mãe que me apontou naquele dia não sabia justificar por que a filha deveria ter o comportamento que ela queria, então me usou como arma. Preconceituosa era ela, não eu, que estava achando uma graça danada no que a menina fazia. A minha sensação diante da frase do livro adotado pelo MEC é a mesma.


Portanto, os jornalistas, além de terem manifestado um preconceito travestido de linguístico, mas que na realidade não o é, talvez tenham se sentido alvo do preconceito contrário, o preconceito contra as elites. Porque ele existe, e eu, que fui criada num bairro operário do Ipiranga, onde se dizia “nós pega o peixe”, sei que quem assim falava olhava com desconfiança para quem dissesse “nós pegamos o peixe”.


Os jornalistas foram acusados de dizer asneiras. Acho que ninguém deveria vir a público escrever uma coisa dessas, em termos ad hominem. Mas uma parte da nossa elite só sabe se expressar nesses termos. Jornalista não é linguista, mas é usuário privilegiado da língua. É uma das categorias do “leigo” de que falei no outro artigo: trata-se de pessoas que precisam escrever formalmente, mas têm dúvidas. Precisam de manuais, e os houve (ou há?) em abundância em todas as redações (alguns lamentáveis, é verdade). Não entendo por que se há de considerar que a língua tem de ser fácil, quando intrinsecamente não é. E nunca será. Nenhuma língua. Língua é coisa tão difícil, que sempre houve especialistas em língua. Aquilo que os linguistas de hoje se consideram: especialistas. São. Mas não os únicos. Há todo um espectro de outros especialistas, que abordam a língua por aspectos diferentes, todos parciais, de tal forma que o estudo de uma língua exige a consideração de todas as especialidades. Considerar-se um especialista e dizê-lo explicitamente, brandindo sua autoridade diante do nariz dos não especialistas ou dos outros especialistas, é um tremendo ato de arrogância. Já li e engoli isso em muitos artigos. É assim que vivemos de ilhas.


Mas, deixando de lado a análise de comportamentos, passo à conclusões do texto acima, que me parecem importantes:


1) A variante coloquial vem sendo considerada nos livros didáticos há décadas. Logo, por um lado, não há por que se espantar agora e, por outro, não há por que achar que a defesa dos incultos mereça uma cruzada. E, se há discriminação em sala de aula, é por atitude deseducada de alguém ou de algum professor (e à falta de educação nunca estaremos imunes).


2) A variante normativa ou culta ou formal deveria ser ensinada por suas qualidades intrínsecas, e não para livrar de pretensas manifestações de preconceito o usuário da variante coloquial ou popular.


3) Mais útil seria enfatizar o uso dos diversos registros nas situações em que eles são mais necessários ou cabíveis, e essa é uma questão crucial para a tradução, importante num país como o nosso, que traduz muito. E esses registros serão expressivos na exata medida em que estiverem enquadrados na situação que lhes é peculiar: eles são a marca dessa situação, de tal modo que, usados universalmente, deixarão de ser marca e passarão a ser norma — eis aí um paradoxo para o qual muitos dos nossos especialistas parecem não atentar.


Há diversos elementos teóricos discutíveis, mas este espaço não me permite abordá-los. Não sei se a discussão necessária e desapaixonada está ocorrendo. O que vejo na mídia são afirmações fáceis, simplistas. E tudo o que é simplista tem rápida aceitação. Não tem muitos seguidores o sujeito que convida à reflexão.


Vejamos um bloco de afirmações simplistas que vem sendo repetido exaustivamente, encontrando muitos adeptos. A afirmação, feita com formas variáveis, é mais ou menos a seguinte: “A língua é um organismo vivo, em constante mutação. A prova disso é que o que falamos agora já foi considerado errado na Idade Média, quando a norma culta era o latim. Se ouvíssemos os gramáticos, ainda estaríamos falando como Camões.”


Por partes:


1) “A língua é um organismo vivo, em constante mutação”: eis aí um dado indiscutível.

As leis e os modos dessa mutação podem e devem ser observados e estudados (é o que sempre fizeram a linguística e a filologia). No entanto, o estudioso, ou grupo de estudiosos, que indicar se este ou aquele desvio da norma se tornou dominante ou determinante estará (mesmo afirmando que não) “normatizando” esse desvio. E quem quer tornar norma um desvio sempre entra em choque com os que têm por norma a norma, e não o desvio. Nesse momento, de duas uma: ou se estabelece um diálogo ou se nega o diálogo e entra-se num conflito. Quando ocorre este segundo caso, o cunho ideológico é sempre forte, porque, se é impossível o diálogo, é porque as duas partes (ou uma delas) tem pendores totalitários. Além disso, a velocidade e a realidade da mudança podem não ser tão óbvias para uns quanto para outros, sobretudo se considerados fatores geográficos, sociais e temporais. Conclusão: não é nada que possa ser decidido de forma simplista.


2) A segunda parte da afirmação: “A prova disso é que o que falamos agora já foi considerado errado na Idade Média, quando a norma culta era o latim”.

Afirmação grosseira porque não se aprofunda nos dados históricos. Não há dois momentos históricos idênticos. Quem fez um curso superior na área de ciências humanas deveria saber disso. Vejamos esquematicamente a realidade medieval:


Nossas atuais línguas neolatinas são herdeiras dos diversos vulgares (de vulgo = povo) surgidos do choque entre os substratos locais e o latim trazido por um exército vencedor que implantou sua língua junto com sua administração e suas leis (estas, até certo ponto). Tais línguas vulgares se desenvolveram nos lares, nas ruas, nos prostíbulos etc., faladas por todos, inclusive por aqueles que nas igrejas, nos cartórios e nas universidades falavam latim. O latim não era visto como norma culta, o latim na verdade era outra língua, necessária porque na prática era a única que possibilitava a comunicação em meio a um caos de dialetos, numa realidade geográfico-social confusa, em que um vilarejo de algumas centenas de habitantes tinha língua própria (mas não só isso: também costumes, leis etc.). Ou seja: não fosse o latim, com o esboroamento do império, nem uma comunicação mínima seria possível entre os diversos povos que, no entanto, tinham sido postos a interagir por aquele mesmo império. O latim era a língua da burocracia, a língua do poder, porque sempre há uma língua do poder, desde que haja poder.


Quando, desse caldeirão, se cristalizaram alguns poderes na forma dos grandes Estados modernos, cada um destes precisou ter sua língua oficial. Portanto, o surgimento das línguas modernas, como tais, está umbilicalmente ligado ao surgimento do Estado moderno. Mas há outro lado na questão: por que eles tiveram condições de escolher uma língua vulgar, e não optaram pelo latim? Porque naquele momento, justamente por causa do desenvolvimento ocorrido na sociedade, as línguas vulgares já tinham alcançado um grau de estruturação sintática, vocabular e gráfica (havia sons que o latim não possuía, era preciso representá-los) que possibilitava essa escolha. As línguas vulgares tinham atingido o patamar de língua de cultura, num momento em que já havia uma pujante literatura escrita. Por isso, no momento em que o Estado (= o poder) precisou de um instrumento único, teve como encontrá-lo naquelas línguas que alguns séculos antes eram apenas orais e estavam num estágio incipiente. Então esse instrumento eleito foi descrito e normatizado nas diferentes regiões. Logo, quem diz que língua é poder está certo, mas não está certo dizer isso de forma simplista, na esperança de estigmatizar uma norma culta supostamente imposta de cima para baixo. Mas há outro aspecto importante nessa história toda. A Europa, depois do sumiço do poder centralizador representado pelo império romano, virou uma colcha de retalhos com um espantoso grau de analfabetismo. Até mesmo entre os nobres o analfabetismo grassava (quadro no qual, aliás, as mulheres constituíam interessante exceção). Cidades, aldeias e até vilarejos, embora não muito distantes entre si, eram ilhas de povos que se consideravam diferentes, adversários ou mesmo inimigos uns dos outros. Alguma semelhança com nosso quadro social atual? Nenhuma. Como então querer transpor um fato histórico para uma conjuntura totalmente diferente? Como um raciocínio automático e simplista como esse pode conquistar tantos adeptos, mesmo entre pessoas que teriam instrumentos para refletir?


3) Finalmente: “Se ouvíssemos os gramáticos, ainda estaríamos falando como Camões”.


Mas nem com um exército armado de gramáticos! Porque isso contraria o que foi afirmado axiomaticamente em 1): a mudança é inelutável. Se esse é um axioma, não há como ser contradito. Ou não é um axioma. Mas, embora inelutáveis, as mudanças têm ritmos e intensidades diferentes em cada período. Nas culturas pujantes o tempo de estabilidade tende a se dilatar. As culturas mais frágeis são muito mais permeáveis a influências desestabilizadoras. Há séculos estamos vivendo um período de relativa estabilidade, em grande parte facilitada pelas forças de permanência de que falei no outro artigo. É por isso que, embora não falemos como Camões, ainda somos capazes de ler Camões. Eu pelo menos ficaria muito chateada se daqui a cem anos alguém precisasse de tradutor para ler linhas como estas que escrevo agora. Por isso, quando uma língua tem atrás de si um lastro cultural importante, justifica-se o cultivo de uma forma estável em nome desse lastro. E quem achar que a forma oficial da língua só serve de instrumento para o poder ditar suas leis e se consolidar, que pense na cultura que ao longo dos séculos se aglutinou em torno dessa língua e responda se ela deve ser cultivada nas suas formas mais sublimadas só para escapar a um alegado “preconceito”.

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