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Vidas de Vasari - perplexidades da tradução


Além disso, [os escultores] tomam como forte fundamento a alegação de que mais nobres e perfeitas serão as coisas que mais se aproximam da verdade, dizendo que a escultura imita a forma verdadeira e mostra suas propriedades a quem gire em torno dela de todos os pontos de vista, ao passo que a pintura…

[…]

[Os pintores] acrescentam também que, enquanto os escultores fazem duas ou três figuras no máximo com um mármore, eles fazem muitas num painel, com os diversos e variados pontos de vista que a estátua tem, conforme dizem aqueles, compensando com a variedade de posições, escorços e atitudes a possibilidade que tem a obra dos escultores de ser vista em toda a volta.


Vasari, Vida dos artistas, WMF Martins Fontes, 2011, trad. Ivone C Benedetti, “Proêmio”, pp. 6-10.


No capítulo do qual foi extraído o texto acima, Vasari se dedica à tarefa de descobrir quem tem razão, escultores ou pintores, quando afirmam que sua própria arte é a mais nobre e verdadeira de todas. Um dos argumentos dos escultores, sobre os pontos de vista, contestado com inteligência pelos pintores, me pareceu bem pertinente para iniciar este texto.

Porque sempre é possível uma dessas duas atitudes: dar a volta a um mesmo e único objeto concreto, descobrindo consecutivamente suas faces, como se faz com uma escultura (segundo dizem os escultores), ou, como dizem os pintores, discernir as diversas possíveis faces de vários corpos pintados numa superfície plana com a maestria da perspectiva.

Discussão ociosa essa de defender maior nobreza desta ou daquela arte. É mais ou menos também a conclusão do próprio Vasari. Então qual o interesse de todo esse capítulo que nada mais é que a dissimulação de vaidades bobas com argumentos duvidosos? O interesse é a própria narrativa que se esconde por trás de cada argumento. O interesse está na lógica arregimentada, que pelos seus interstícios vai entregando dados sobre modos de ver a arte, dificuldades técnicas, interações econômicas e sociais, ideais de vida etc. Enfim, algo que extrapola a história da arte.

Olhar para o texto desse modo é olhar para o olhar de quem o escreve, e não para o objeto de seu olhar, como quem busca no quadro entender a perspectiva, abstraindo a figura representada.


Isso se aplica ao livro todo de Vasari.


Se aquilo de que Vasari fala valesse hoje de per si, bastaria traduzir o texto e apresentá-lo ao leitor como está. Mas não vale. Entre as informações válidas que Vasari dá, há também as (não poucas) inválidas: na melhor das hipóteses porque superadas pela passagem do tempo, pela desobra da incúria ou pela varrição de catástrofes e guerras; na pior, por erro mesmo.

Não por outra razão a WMF Martins Fontes optou pela edição da Einaudi, organizada por Giovanni Previtali, com fabuloso aparato crítico, que corrige, complementa e enriquece todas as informações dadas por Vasari. Desse modo, do ponto de vista técnico, os dados realmente fidedignos não estão no texto, e sim nas notas.


Isso reduziria a pretexto o texto de Vasari? Se o interesse for apenas pelo objeto (a arte no Renascimento), talvez sim; se o interesse for pelo sujeito, não é pretexto, mas obra literária, ainda que não de ficção.


Literária porque expõe a visão de mundo de um sujeito que se supõe a expor o mundo. É pelo menos assim que hoje vemos essa obra com nosso olhar antiutópico. Nela, as biografias todas reunidas redundam numa espécie de tratado técnico permeado por algo que resistimos a chamar de filosofia, algo que veríamos mais como uma doxa. Mas uma doxa ainda hoje surpreendente. Ali está um pensamento, uma ideologia, ou pelo menos um ideário que pertence a toda uma época, que a marca. Essa é a beleza do texto, nisso está seu interesse. Vasari se diz, dizendo o outro. E o diz como porta-voz de um projeto extraordinário: uma utopia que é a revivificação de um passado, uma utopia rediviva, a que se deu o nome de Renascimento. Utopia peculiar, portanto, porque ideal realizado. A arte atingia a perfeição (essa palavra aparece insistentemente) naquele momento e naquele local exato: a Toscana, mais precisamente Florença. Visto assim, não há por que estranhar o fato de Vasari não praticar nada do rigor objetivo tão prezado por nossa época. Há muito abandonamos as utopias.


Em certo sentido, a edição de 1550 é muito mais saborosa que a de 1568. Se esta última vem mais recheada de informações e correções (mas, apesar disso, não dispensaria um bom aparato crítico), naquela Vasari expande mais os seus pontos de vista, digamos, subjetivos: por exemplo, cada “vida” é iniciada por considerações existenciais em torno do destino do biografado; sintomaticamente, esses preâmbulos se reduziram ao mínimo na edição de 1568.


Todas essas considerações e mais outras, no processo de tradução, desempenharam papel determinante nas minhas opções. Para nossos séculos, o texto de Vasari deixou de ser veicular, ou seja, sua função não é meramente transmitir informações. Por isso ele foi esquecido ou dispensado pelos estudiosos de arte durante certo tempo (leia-se a introdução de Previtali). Se o objetivo de ler Vasari fosse apenas colher dados objetivos, o tradutor precisaria reformular drasticamente o texto para torná-lo (como gostam nossos séculos) claro, conciso, objetivo. Seria um erro crasso. A escrita de Vasari é a encarnação do seu pensamento, a manifestação material de uma atitude. Ler Vasari é fruir um modo de ser, um modo de ver.


A tradução de textos antigos sempre cria certa hesitação: até que ponto prender-se à fraseologia sem tornar o texto ilegível e até onde ir na sua reestruturação (principalmente sintática) sem criar inverossimilhanças e anacronismos? Ou então: quando é importante ceder ao antigo para tentar passar um pouco do sabor do original e quando é importante renunciar a isso para não impor o despoticamente incompreensível?


Enfim, onde encontrar o fiel da balança entre o exotismo e o autocentrismo?


A cada linha, uma escolha.


Sempre uma escolha.

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