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NATAL

Publicado na revista Cult nº 146

A porta da igreja bate, mal desceu ele o primeiro degrau. Um tranco, uma reabertura, outro tranco, o guincho emperrado enfim se cala, a chave range na fechadura, o padre (grunhe?) se afasta da porta, pé direito arrastado em decrescendo igreja adentro. Até silenciar.

 

Parado na escadaria, ele contempla a praça estática reverberando o luar amarelado de uma lâmpada. Fica ali sem dar passo, forma vertical imóvel que, de tão tenuamente pousada no chão, mais parece dependurada de um fio de aranha. Num monturo de lixo esquecido ao pé da escada uma forma pequena, esperta, indefinida, mais escura que o escuro se rebolca: único som movediço da cidade. São horas altas, horas de ratos. Uma centena de minutos atrás o padre disse: passa da meia-noite, melhor ir embora. Não encerrou por vontade própria a confissão. Ela se acabou, como tudo.

 

Esgueira-se pela esquerda, quer escapar à ronda, e envereda pela ruela atrás da igreja.

 

Tire essa roupa do exército, ela vai ser sua condenação. Deixe essa carabina ali no canto e saia abençoado por Deus, sem perigo de ser atormentado pela vingança. Mas ele não quer. Faz três dias que é outro, desde que entrou no 21º Batalhão de Caçadores como quem pisa em casa própria para receber farda e carabina das mãos de João Francisco Gregório. Não lhe sobrara coturno. Da calça imensa, arrepanhada na bainha, as canelas finas se espraiam nuns pés achatados e magrelas, enfiados em sandálias toscas. A camisa, agora já cansada de buscar limites em calças tão frouxas, balouça livre ao largo da bunda sumida, enquanto ele se afasta da igreja, carabina enganchada na mão direita, perpendicular ao corpo, coronha à frente, para o caso de precisar servir de porrete. Balas poucas lhe tinham dado. Mas se achara perfeito. Até o riso da mulher: homem, não lhe deram quepe!

 

Entrou em casa, atravessou a cozinha, o corredor, sem necessidade de luz. Empurrou a porta do quarto. A mulher dormia e dormindo ficou. Volte para a estiva, meu filho, aceite a sorte que Deus lhe reservou. Não confiasse na falácia humana, devia ter-se guiado pelo Evangelho e agora não estaria nessa aperreação. Dos sonhos de direito a pão, terra e liberdade, tinha guardado o segundo, só o segundo lhe importava. Pelo sonho de voltar a pisar as terras paternas deu com vontade cada tiro permitido pela munição minguada, esqueceu pecados, desacreditou medos. Por ele enfrentou legalistas e acreditou ser sua a vitória. Só por ele tinha suportado o riso da mulher, ouvido com soberba a proposta: por que não vai lá pegar um pouquinho daquele dinheiro que tiraram do Banco do Brasil? Na noite da véspera, a dor de ficar diante de si, sozinho na praça, carabina descarregada na mão, ouvindo dizer da fuga dos comandantes. Buscou abrigo em casa do primo, de quem recebeu os conselhos que o padre repetiria: se desfaça desse uniforme e dessa carabina, volte a ser o de sempre. Não conseguiu. Vai para mais de vinte e quatro horas que o sonho acabou e ele não consegue voltar a ser o que era. Porque o já-não-é nunca volta a ser. Ressurreição é moeda falsa. O padre devia saber.

 

Entra no quarto, encosta a carabina na parede e, com a parcimônia de gestos que só os mirrados têm, despe-se. Vai ao armário, pega calça e camisa, veste-se. Alcança a roupa de soldado no espaldar da cadeira e a estica ao lado da mulher: pernas abertas, mangas também. Deita por cima da farda a carabina e afasta-se da cama. Por uns segundos avalia o quadro e sai.

Fecha a porta. Nunca mais é visto.

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