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Lendo Umberto Eco, recentemente — trata-se de Limites da interpretação —, deparei com um exemplo que ele dá para tentar estabelecer critérios de legitimidade das interpretações de textos (na tentativa de evitar aquilo por ele denominado “neoplasia interpretativa”), e o exemplo me pareceu cabível também para a tradução. Não é nada incomum o paralelo interpretação/tradução, portanto, não fui muito original. Mas nesse trecho Eco cita um verso de Wordsworth, que está no poema intitulado “The Daffodils”: A poet could not but be gay. Depois de citá-lo, Eco diz o seguinte: “um leitor sensível e responsável não é obrigado a especular sobre o que se passou na cabeça de Wordsworth ao escrevê-lo, mas tem o dever de levar em conta o sistema léxico da época de Wordsworth. No tempo dele, gay não tinha nenhuma conotação sexual, e reconhecer esse ponto significa interagir com um cabedal cultural e social”. 

 

 

As palavras de Eco têm em mira aquilo que ele chama de interpretação crítica, em contraposição àquilo que ele chama de interpretação semântica. Ou seja: a interpretação semântica (ou semiósica) “é resultado do processo pelo qual o destinatário, diante da manifestação linear do texto, preenche-a de significado. A interpretação crítica (ou semiótica) é aquela por meio da qual se procura explicar por quais razões estruturais pode o texto produzir aquelas (ou outras, alternativas) interpretações semânticas”. E Eco conclui dizendo que todo texto pode ser interpretado semântica ou criticamente, mas apenas poucos textos preveem conscientemente ambos os tipos de leitor-modelo. 

 

Ora, e o que tem Wordsworth a ver com tudo isso e o que tudo isso tem a ver com crítica da tradução? 

 

Tento agora estabelecer os nexos. 

 

À primeira vista, a impressão que se tem é que o tradutor permaneceria, que lhe bastaria permanecer, ou que teria de permanecer, no nível da manifestação linear do texto, e que pouco lhe importariam eventuais interpretações críticas. Diante de estudos de teoria da tradução que contemplam a atividade interpretativa do texto em sua aplicação à tradução, não é incomum ouvir de tradutores até experimentados a pergunta perplexa: “mas o que tem o tradutor a ver com interpretação?”. 

 

A pergunta não é de todo impertinente, mas a perplexidade não chega a justificar-se. Voltando ao verso de Wordsworth, eu diria que temos aí um típico exemplo de coincidência entre necessidade de interpretação semântica e necessidade de interpretação crítica. Seria descabido aventar a hipótese de que algum tradutor experiente viesse a interpretar a palavra gay na sua acepção mais usual e conhecida hoje em dia no Brasil? Confesso que, como tradutora, gostaria imensamente de responder: “Sim, é descabido”. Pois bem, cedo então à minha vontade e parto do princípio de que nenhum tradutor entenderia a palavra gay na sua conotação sexual corrente hoje em dia no Brasil. Concluo que, guiado pelo conhecimento de que tal verso foi escrito por alguém que viveu entre os séculos XVIII e XIX, momento da língua inglesa em que a palavra gay tinha n-1 conotações, em que (-1) significa a conotação atual, o tradutor traduzirá corretamente essa palavra. Traduzir corretamente significará, portanto, atribuir-lhe a acepção (ou uma das acepções) que ela tinha naquele momento histórico. Ora, nessa operação, o tradutor terá feito (provavelmente em questão de segundos) um cotejo de todos os seus conhecimentos enciclopédicos para concluir qual seria a acepção mais adequada. A falta desses conhecimentos enciclopédicos redundaria naquilo que se costuma chamar de tradução “errada” — e, evidentemente, aqui estou pressupondo esse engano apenas como argumento ab absurdo. Em suma, estamos tipicamente diante de um caso no qual, sem interpretação crítica, não se chega à correta interpretação semântica. 

 

Muitos dos meus colegas aqui presentes argumentariam, talvez, que esse tipo de coincidência não ocorre sempre. É verdade, mas a minha impressão é de que esses casos são muito mais frequentes do que se supõe. Eu diria que o tradutor faz muito mais análises críticas do que imagina, porque na maioria das vezes não se dá conta de que as fez. É nesses momentos que ele põe em ação o seu cabedal de conhecimentos. 


A crítica de que estou falando é aquilo que o dicionário Houaiss define como “atividade de examinar e avaliar minuciosamente tanto uma produção artística ou científica quanto um costume, um comportamento; análise, apreciação, exame, julgamento, juízo”. Há outras definições, mas fico com essa. Ora, é no momento em que deixa de fazer essa crítica, ou no momento em que faz uma crítica equivocada, que o tradutor se expõe ao risco de errar. E, quando erra, expõe-se à crítica, ou, quem sabe, a críticas. E agora estou falando de outra acepção de palavra, que, segundo ainda o dicionário Houaiss, é “ação ou efeito de depreciar, censurar; opinião desfavorável; censura, depreciação, condenação”. 


Conforme se pode constatar da quase totalidade das respostas à 10ª pergunta feita aos tradutores no livro Conversas com Tradutores que, em parceria com Adail Sobral, organizei para publicação pela Editora Parábola, é desse tipo de crítica que os tradutores se consideram alvo, e não de outro, definido também pelo Houaiss como “arte e habilidade de julgar a obra de um autor”. Para resumir, direi que o tradutor exerce (ou deveria exercer) a crítica como “exame, análise”; os críticos de tradução deveriam exercê-la como “arte de julgar uma obra”, mas, segundo os próprios tradutores, eles a exercem como “condenação”. E qual seria o tipo de crítica de que os tradutores se considerariam merecedores? Em outras palavras, no que consistiria a crítica como “arte” de julgar a tradução? E — pergunta complementar — quem seria competente para fazê-la? 

 

Diria que, como conseqüência lógica do que venho expondo, uma crítica de tradução só poderia ser uma crítica da crítica. Se a atividade tradutora sempre pressupõe uma crítica — prévia ou simultânea, consciente ou inconsciente —, mas a pressupõe como condição sine qua non (tanto que sua ausência sempre deixa marcas detectáveis), a crítica da tradução consistiria no esforço de detectar os pressupostos de que o tradutor partiu para traduzir X por Y, e não por Z. Portanto, a crítica da tradução seria, num primeiro momento, a detecção da crítica feita pelo tradutor. O segundo momento seria, mais precisamente, a crítica dessa crítica. 

 

Ora, assim como existem métodos críticos em literatura, existem métodos críticos em tradução. E aqui falo da crítica empreendida pelo tradutor. As táticas adotadas diante de um texto (sobretudo o literário, mas ouso dizer que qualquer tipo de texto reivindica algum tipo de tática de abordagem), essas táticas — dizia eu — costumam ser mais ou menos constantes em cada tradutor, sofrendo graus maiores ou menores de variação, de acordo com a tipologia textual, com o autor etc. Explico-me. Os tradutores, assim como os autores, têm seu estilo. Diante do mesmo tipo de texto é fácil identificar estilos – escolha de palavras, mas principalmente, de expressões e de estruturas sintáticas. Num quadro ideal, a mudança de tipo de texto ou de autor, com a consequente mudança de estilo do original, determinaria uma mudança correspondente no estilo do tradutor. Quando isso ocorre, pode-se dizer que o tradutor realizou uma crítica prévia que lhe permitiu identificar uma mudança, e a ela se ajustar. Pois bem, diante disso, pode-se dizer que na atividade tradutora se encontram dois componentes cuja íntima conjunção é responsável pelo seu caráter até certo ponto paradoxal: ao mesmo tempo que deixa transparecer o seu estilo (“o estilo é o homem”, ou “le style est l’homme même”, já dizia Buffon, sem imaginar talvez que sua frase se tornaria tão famosa), o tradutor deve ser capaz de mudar de estilo junto com seu texto. Essa tensão entre o estilo próprio e o alheio constitui o cerne da atividade, o seu nó górdio, muito mais — arrisco dizer — do que a tensão entre língua de chegada e língua de partida. 

 

Uma verdadeira crítica da tradução, portanto, precisaria detectar os elementos dessa tensão e trazê-los à tona. A adequação ou inadequação das táticas empregadas para resolver as tensões de estilo, aliadas a uma análise de tipologia textual mínima, são coisas que poderiam constituir um bom tema para uma crítica da tradução que ultrapassasse o nível elementar da busca do erro ou do acerto lexical, o nível elementar da crítica como condenação. 

 

Atividade complexa, sem dúvida. E aí chegamos à nossa segunda pergunta: quem seria capaz de exercê-la? Corro o risco de beirar a tautologia, mas vamos lá: “alguém que entenda de tradução”. Alguém que conheça as duas línguas! Mas não só: alguém que conheça caminhos e atalhos que levam de uma à outra. Mas não só: alguém que conheça a obra original, seu autor. Mas não só... alguém que conheça estilística... E assim por diante. Não é fácil. 

 

O que teríamos? Um crítico tradutor? Um tradutor crítico? É preciso então ser tradutor para exercer essa crítica? Não acredito. Mas é preciso conhecer tradução tanto quanto o tradutor ou mais que ele. Um crítico de tradução que não conheça todas as implicações da atividade fará, provavelmente, uma das seguintes coisas: ou se aventura num terreno desconhecido, com o risco de tropeçar, ou se limita a pescar erros. Às vezes tenho a impressão de que, por medo de arriscar-se na aventura e levar um tombo, os jornalistas omitem comentários sobre a tradução quando nela não encontram defeitos óbvios, e fazem de conta que estão analisando a obra original. É a clássica situação que os tradutores costumam comentar com as seguintes palavras: “se não falou mal é porque está bom”. Quando os erros são óbvios, ninguém se omite. Questão de má-fé? Não. Questão de carência. Carência de profissionais especializados nesse campo. Mas como esperar especialização na crítica de tradução se em nosso país se considera dispensável que alguém se especialize na própria tradução? 

 

Retomando a pergunta que fiz há pouco: é preciso ser tradutor para exercer essa crítica? Respondi: “não acredito”. Acrescento: acho até difícil. O tradutor profissional não se sente à vontade para exercer esse tipo de crítica que, de qualquer modo, poderá incidir na necessidade de apontar eventuais erros. Em geral, o tradutor profissional se limita a comentar a obra do colega quando ela merece elogios. Mas esse não seria um verdadeiro trabalho de crítica. De crítica esmiuçadora. De crítica da crítica, como dizia no início. Ora, existe um outro aspecto. A crítica da crítica, mencionada acima, poderá trazer à tona uma crítica implícita do tradutor, uma sua interpretação que não se enquadre exatamente nas concepções que o autor da crítica da tradução tem da crítica do texto. Que fazer então? Todos sabemos que há “linhas”, tendências”, “posicionamentos”. Que comportamento adotar quando se acha que uma tradução “correta” não é necessariamente a “melhor” tradução? Como se eximir da espinafração? E aí entramos no terreno da ética, se é que alguma vez não estivemos nele. 

 

E por falar em ética, retomo uma de minhas frases acima: muitas vezes os jornalistas fazem de conta que estão analisando a obra original, quando na verdade estão analisando uma tradução. Contradição? Não, de jeito nenhum! Cegueira? Também não, pois, afinal, o tradutor não é invisível? Segundo a lógica vigente, o tradutor é e deve ser sempre invisível, a menos que a sua 
grande visibilidade na cena cultural do país impossibilite deixar de enxergá-lo. E aí, é infalível o elogio. 

 

Por outro lado, não é incomum a confusão entre visibilidade textual (conceito técnico) e visibilidade social (coisa do senso comum). Quem tiver, para uma crítica de tradução, os pré-requisitos que expus acima, nunca deixará de enxergar o tradutor nas entrelinhas do autor, sempre saberá que o tradutor é textualmente visível, ainda que ele mesmo se acredite e se queira escondido. Quem não tiver esses pré-requisitos só detectará a visibilidade social, não sairá do senso comum e só terá coragem de elogiar figurões, mesmo porque criticá-los (em todos os sentidos) é incômodo, espinhoso, pode expor à pena do cilício (com “c” mesmo). 

 

Mas começa a chegar a hora de terminar. E estamos apenas começando. Pela primeira vez presencio um evento como este, em que os tradutores, sempre expostos à crítica, se propõem analisar essa mesma crítica. Escolhi para terminar um trecho que me caiu nas mãos esta semana, por feliz acaso. Trata-se da resenha que Luís Antônio Giron fez, para a revista Época, da tradução de Os Demônios de Dostoievski, de autoria de Paulo Bezerra. Dizendo que esse texto recebeu a primeira tradução diretamente do russo, 133 anos depois de sua criação, Giron escreve as seguintes palavras lapidares: “O ESTILO DO TRADUTOR pode soar deselegante aos ouvidos cevados no racionalismo das traduções a partir do francês [...]”. E termina: “o tom brutalista de Bezerra calhou à história, borbulhante de zombarias”. Eis aí um progresso. Detecta-se um “estilo do tradutor”. Dá-se a ele um qualificativo: “brutalista”. Isso é reconhecer que o autor do texto português é Paulo Bezerra, que ele fez uma análise do estilo de Dostoievski, que considerou o texto “brutalista”, que a ele procurou adaptar-se e que o fez com felicidade.

 

Sem dúvida, um progresso que não deve estar dissociado da “borbulhante” atividade observada nos últimos tempos em torno da tradução, num momento em que estão sendo revistos conceitos fundamentais da atividade, tais como autoria, crítica e invisibilidade. Isso ainda vai dar samba. 

 

 

 

 


Referências bibliográficas 

BENEDETTI, Ivone Castilho & SOBRAL, Adail (2003) Conversas com tradutores. 
São Paulo: Parábola. 

ECO, Umberto (2000) Os limites da interpretação. Trad. de Pérola de Carvalho. 
São Paulo: Perspectiva. 



 

 

A crítica de tradução

 

Palestra proferida na PUC-Rio

em 5/10/2004 por ocasião do lançamento do periódico Tradução em revista

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