top of page

Ela já distribuiu as cartas suas e as do marido. Pega a suas. Abre o leque devagar, olha todas, uma a uma, com cara de sei o que estou fazendo, e com os dedos espertos de catar arroz, como só os dela, arruma os começos de canastra e as sobras que pelo jeito vão ser descartadas. Não vale jogo de lavadeira, já está definido. Pena os dois 3 que ela tem ali à direita. Paus e espadas. Também de espadas já tem outro 3 encaixado, do lado esquerdo, antes de um 4 e de um 5 e depois de nada. Se conseguir segurar aquele 3 de espadas, dificulta a vida do velho. Se bem que, com aqueles coringas todos que ele tem... Não pretende descartar aquele 3 de jeito nenhum. Com a esquerda segura firme o leque e, enquanto pensa, com a direita pega o copo de Cinzano. Beberica.

 

Hoje não está muito concentrada, nem ontem tampouco, como nos outros dias, todos, em que jogam buraco e bebem vermute.

 

Precisa contar mais uma que o filho aprontou. Não sabe como começar.

Velho, escuta, do carro que o Nene comprou nem te falo. Você era contra comprar tão já, eu também, mas ele quis que quis, vendeu a moto, juntou mais uns trocados e comprou. É turrão, eu disse que não ia dar dinheiro, e não dei, mas ele arranjou. Diz que carro é precisão, que mãe não pode sair por aí montada em garupa de moto. É verdade. Ele tem razão. Dia de chuva também, coitado, é difícil. Inverno passado, aquele frio, aquela garoa pesada, ele por aí de moto, eu preocupada. Mas acho que ele foi enrolado. Só vendo. Olha, velho, não zanga, não, mas acho que a gente vai precisar mexer outra vez na poupança e dar um dinheiro para ele. Não é muita coisa, quer dizer, até é. Você descartou a dama de copas que eu queria. Não, não adianta agora reclamar. Já peguei. Fica aí com esse 5 de paus. Ontem te dei o rei que faltava para a tua canastra real, não reclama. Não, não estou fugindo do assunto. Deve dar uns dois mil reais. É porque tem multa para pagar, ele só descobriu hoje. Sabe o que é, velho, as coisas são tão complicadas, é muito papel, muita burocracia, eu não entendo disso, o Nene também não. Para nós um carro é um carro, só isso. Mas, vai ver, não é. Um carro é um monte de lata que custa muito, mais uma papelada que pesa mais que a lata. Não te falei, falo agora, o carro foi apreendido. Ontem não tive coragem, estava tão chateada que fiquei calada. Não zanga, velho, mas o carro foi guinchado. Sim, sim, ontem o vendedor trouxe o carro e deixou aí na porta, o Nene deu o dinheiro limpo, o rapaz foi embora. Aí, conversa vai, conversa vem, comigo ali na frente, chegou o Zé, aquele outro desmiolado. O vendedor tinha deixado o carro imbicado na calçada, roda na guia, disse que era melhor assim porque o freio de mão precisava de ajuste, a guia segurava o carro, para não desembestar pela rua abaixo. O Nene disse que, tudo bem, era coisa simples, que podia deixar, ele ia consertar, só vendo que alegre que estava. Aí, como eu disse, chegou o Zé. Veio só para encher a cabeça do outro, querendo já dar uma volta de carro, e tanto falou que resolveram sair, tudo ideia do Zé. Fui contra. Eu disse: nada disso, o Nene está de carta vencida, não vão sair, ele me disse que o carro ia ficar parado até chegar a carta, que semana que vem chega a carta. É bom esperar, eu disse, hoje já é quinta mesmo — que era ontem. Mas nem me ouviam, já estavam dentro do carro. Aí, quando foram dar a marcha à ré para sair, não funcionou. O carro não andava para trás, só para a frente, nunca vi coisa dessa. O vendedor já tinha ido embora, como eu disse, fazia uns quinze minutos. O Nene ligou para o celular dele, dava caixa postal. O Nene ficou muito chateado, disse que aquilo era uma falseta, vender carro enguiçado, porque decerto agora ia precisar mexer no câmbio, que é coisa cara. Tentou de tudo quanto foi jeito, não engatava mesmo. Quer dizer, engatava mas não entrava a marcha, que sei eu. Foi o que ele disse. Eu, encostada no portão, vendo tudo, não sabia se dava graças a Deus porque não podiam sair ou se xingava o safado que tinha vendido o carro naquele estado. Mas não falei nada, você sabe que ele não suporta que a gente chame a atenção dele na frente dos outros. Então o Zé disse: não tem ré, não faz mal, a gente dá um empurrãozinho para trás, desgruda da guia, e sai para a frente. Dito e feito. Até que saíram. Saíram dizendo que iam até logo ali, na casa de ferragens, comprar um registro, para trocar aquele do banheiro, que está sem serventia, travado, água fechada, chuveiro parado porque ele vaza. Você sabe. Não adiantou eu dizer que era melhor ir de ônibus. Me deixaram falando sozinha na calçada, eu nem tinha acabado de dizer a, já iam descendo a rua para lá da casa do Alonso. Duas horas depois ainda não tinham voltado, e você sabe que a loja de ferragens é logo ali. Liguei para o celular do Nene, ouvi ele tocando ali no quarto. Tinha ficado em casa. Nossa, que raiva! Chegaram meia hora depois que eu tentei ligar, mas chegaram sem o carro. Achei que tinha quebrado de vez. Antes fosse. Diz que pararam o carro na travessa da esquina da farmácia, sabe qual é, né, foram até a loja, compraram o registro, quando voltaram estava lá um guarda rodeando o carro. Eles chegaram, o guarda disse que a travessa era contramão. Acredita, velho, que anteontem não era contramão e ontem já era? Então os dois explicaram que não tinham reparado na mudança, o guarda apontou a sinalização, ali nas fuças deles, eles não tinham visto. Rua sem movimento, não sei por que mudar a mão. Aí diz que o guarda no começo não queria conversa, depois até amoleceu porque o Nene, você sabe, ele não é ruim, ele só não entende o mundo, o Nene, com aquela cara de coitado, dizendo seu guarda daqui, seu guarda dali, minha mãe está doente, viemos na farmácia comprar remédio para ela, mostrava o pacote, que era de papel de embrulho liso e não tinha remédio dentro coisa nenhuma, tinha um registro de chuveiro, bom o Nene dizia: preciso voltar logo, ela sofre do coração, tem de pôr o remédio debaixo da língua, senão catapimba, desmaia, o outro dia foi parar na UTI... Ele tem uma imaginação, não sei de onde tirou isso, se eu tenho um coração de aço. No fim, depois de muito choro, o guarda, que não devia ser má pessoa, falou: tá bom, para de chorar, faz a manobra aí e vai embora na mão certa antes que eu me arrependa. Então eles subiram no carro e ficaram lá dentro feito dois bobos, dizendo um para o outro que se fosse fazer manobra iam precisar dar ré, e ré não tinham. Então o Nene mandou o Zé descer, para dar uma empurradinha na hora da ré, o Zé disse que não ia fazer aquilo na frente do guarda, e o guarda ali do lado, esperando, os dois discutindo dentro do carro. Mais vermute, velho? Você é um filho da mãe, olha aí, já bateu e pegou o morto, e eu com a mão cheia ainda. Vou ser obrigada a te dar este 3, caramba. Vou precisar descartar. Espera. Primeiro vou descartar. Mortinho bom, hem. Pois então, já conto. Já conto. Ficaram lá parados, esperando o guarda ir embora. Mas o guarda não ia. Não só não ia como também voltou. Deve ter desconfiado. Perguntou se tinham algum problema, então o Nene disse que o carro não tinha ré. Aí ele achou demais e pediu os documentos. Foi quando a papelada pesou mais que a lataria, quer dizer, a papelada que eles não tinham, porque não tinham isto, não tinham aquilo e aquele outro, umas coisas que nem sei o que são, e principalmente não tinham carta. Conclusão, foi guinchado. Coitado do Nene. O carro está lá não sei onde, para tirar é pagar, pagar, pagar. Ainda tem multa do outro, fora a multa do Nene... Quanto é tudo? Nem te conto, velho. Vai para mais de dois mil. O vendedor é um safado, ainda quer discutir, diz que vendeu o carro, que o carro já é do Nene, que a bobagem foi ele que fez de entrar na contramão, está nesse vai-não-vai, eu acho melhor pagar de uma vez e livrar o carro do que perder quatro mil, que foi o que o Nene pagou, e ficar sem o carro, então não sei o que fazer, ou a gente paga dois mil e o carro acaba ficando por seis, que é caro, ou não paga dois e perde quatro e fica sem o carro, mas depois que tirar o carro vai também precisar arrumar a ré, e o vendedor não quer assumir... A ré... tudo isso porque não tinha ré...

 

Pousa as cartas na mesa, apoia o cotovelo e ampara o rosto na mão. Fica assim, falando ré... ré... ré... sem nada dizer. Levanta, vai até a pia lavar os copos.

 

Sem emprego, não para em lugar nenhum, velho... Mas não zanga não, ele é um bom menino.

 

Põe os copos no escorredor.

 

Dois mil reais, no outro dia já dei três. Daqui a pouco não tenho mais nada. Mas também sem carro fica tudo tão difícil. Ele comprou para me levar aonde fosse preciso. Isso ele tem de bom. É amoroso comigo, me leva no médico, na casa da minha irmã. E sem carro fica difícil.

 

Enxuga as mãos, apaga a luz da cozinha, entra no quarto. Senta-se na cama, põe a mão na testa, fecha os olhos.

 

Pai nosso que estais no céu, santificado seja o vosso nome, ajude meu filho a tirar o carro do guincho, seja feita a vossa vontade, me ajude a saber o que dizer para ele achar o juízo que perdeu, o emprego que perdeu, um encanador para instalar o registro que ele esqueceu lá em cima da mesa, seja feita a vossa vontade, me ajude a aguentar esta vida sem graça assim na terra como no céu, sem meu velho faz um ano, desde que ele entregou a alma ao senhor, amém.

Contato

Parabéns! Sua mensagem foi recebida.

bottom of page