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O PEQUENO PRÍNCIPE: 3 NOTAS DE UMA TRADUTORA

O Pequeno príncipe

L&PM Editora

2015

 

Nota 1: o verbo apprivoiser
Âncora 1

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Uns meses atrás uma colega de trabalho do meu filho, que só tinha me visto uma vez, subiu apressada as escadas da minha casa e foi me buscar no último canto do meu quarto para me dizer que tinha ficado muito feliz por saber que eu estava traduzindo O Pequeno príncipe. Seu livro predileto, dizia ela, que não é miss, apesar de muito bonita. Começamos a conversar sobre o livro, e ela me cita a famosa frase “você é responsável pelo que cativa”, acrescentando que essa mesma frase anda tatuada em alguma parte do corpo de alguém que ela conhece, de tão bonita que é.

 

Tremi nas bases. Não pretendia usar o verbo cativar.

 

O original é apprivoiser. Complicado. Conheci esse verbo na voz de alguma mezzo-soprano: está na habanera da Carmen — l’amour est un oiseau rebelle que nul ne peut apprivoiser, o amor é um pássaro rebelde que ninguém consegue domesticar. Aí é simples. O verbo só aparece uma vez, e ninguém fica cismando em torno dele. No Pequeno príncipe a coisa é um pouco diferente.

 

Apprivoiser significa ao mesmo tempo domesticar* e seduzir. Já o verbo cativar significa prender seduzir. Isso significa, para usar terminologia matemática, que existe uma intersecção entre o conjunto apprivoiser e o conjunto cativar nas acepções relativas a seduzir.  Fora deste subconjunto, não há coincidência de acepções. Quando isso acontece em tradução (e não é tão incomum), o tradutor torce para que naquele texto, principalmente se literário, não entrem as acepções não comuns aos dois conjuntos. Foi o que aconteceu no trecho da Carmen, que citei há pouco. No Pequeno príncipe, os dois subconjuntos de acepções entram um atrás do outro, ou um por trás do outro, de tal maneira que o tradutor sai à caça de algum verbo em português que signifique ao mesmo tempo domesticar seduzir. Não existe. E, por diversas razões, os tradutores optam por “cativar”, que participa do subconjunto “seduzir”, mas não “domesticar”. Exemplificando:

 

  1. A certa altura uma raposa diz ao príncipe que não pode se aproximar dele porque ainda não foi apprivoisée. E aí qualquer francês entende que ela não foi domesticada.

  2. O príncipe não sabe o que é apprivoiser, a raposa acaba explicando. Porém não definindo, pois não diz “apprivoiser é isto”, mas usa uma frase facilmente metaforizável. E aí entra em jogo outra relação de acepções que vou comentar porque uma opção nunca anda sozinha, ao contrário, sempre interage com outras, no caso com as de apprivoiser. A raposa diz: “significa criar laços”. A palavra francesa para laço aí é lien, concretamente atilho, tudo aquilo com que se pode amarrar algo. Fora do campo metafórico também pode indicar o laço com que se prende um animal. E, em uso metafórico, pode ser traduzida sem sobressaltos por elo, vínculo, laço, justamente. Ou seja: existe aí uma coincidência quase perfeita dos campos concreto e metafórico nas duas línguas. Desse modo, Saint-Exupéry estabelece um vínculo (sem querer fazer trocadilho) entre apprivoiser, que parecia ter o sentido não metafórico de “domesticar” e um possível sentido metafórico da palavra lien. O leitor francês aí começa a desconfiar de eventuais nuances figuradas. O leitor de língua portuguesa, em compensação, já não tem dúvida nenhuma: se antes ele tinha lido cativar, agora ele entende que os laços são afetivos. E aí o tradutor brasileiro brocha, porque não consegue comunicar tudo o que o verbo português cativar abafou por trás da sua cativante beleza.

  3. A raposa continua nas suas explicações: por enquanto os dois não se distinguem da massa de seus respectivos semelhantes e um não precisa do outro. Mas, depois que ela for apprivoisée por ele, um precisará do outro, um será único no mundo para o outro. Minha opinião era (notem o tempo do verbo) de que poderíamos continuar usando “domesticar” sem grandes dores de consciência, porque é isso o que acontece quando domesticamos um animal: criamos com ele um laço que nos define como únicos para ele, enquanto ele se torna único para nós. Quem já teve um vira-latas sabe do que estou falando.

  4. Então o príncipe diz que está começando a entender. Lembra-se da flor que deixou em seu planeta e exclama: acho que ela m’a apprivoisé. Bom, aí quem está preso pelos laços já não é um animal, é o príncipe, e o verbo domesticar causa estranheza aos amantes do livro de Saint-Exupéry no Brasil. A amiga do meu filho quase infartou quando lhe falei das acepções do verbo francês. A mim não causaria estranheza o uso de domesticar aí por uma razão muito simples: porque é a raposa que estranha o uso de apprivoiser pelo príncipe quando ele se refere a si mesmo. Então ela comenta: É possível. Na terra a gente vê todo tipo de coisa. Se a raposa estranha é porque na relação entre um príncipe e uma rosa o verbo apprivoiser não se encaixa tão bem quanto na relação entre um animal, que é ela, e o príncipe. E aí começo a desconfiar que a raposa em momento algum falava metaforicamente. Ou melhor: a isso nos induz habilmente Saint-Exupéry.

  5. Contudo, a bela frase “você é responsável pelo que…” não seria jamais aceita com o verbo domesticar. Essa frase, que anda sendo até tatuada, é a última gota de mel de um pote que já vinha se enchendo com outras, como no diálogo do príncipe com as rosas ou na máxima que a raposa ensina ao príncipe: o essencial é invisível para os olhos.

  •  

Esse fecho me fez aceitar as ponderações da editora e optar, também eu, por cativar.

 

A retradução de um clássico é muito menos pacífica do que a primeira tradução de qualquer livro. Porque a interpretação de um texto consagrado já anda pelo ar há décadas, quando não há séculos. Em alguns momentos, quem tentar nadar contra a corrente poderá encontrar uma resistência insuperável, pois é muito difícil destruir fascínios e mitos.

 

Ao se tornar de domínio público, O pequeno príncipe está atraindo um enxame de editoras que querem abocanhar seu quinhão do abundante mel desse best-seller. Até agora sei de duas traduções já publicadas (a minha e a de Frei Betto, pela Geração Editorial, que, aliás, não conheço) e outra em andamento, a da competente Denise Bottmann, que até criou um grupo no qual vêm sendo discutidas questões bastante pertinentes desse texto. Outras mais devem vir, pois sei de outras editoras que andam pensando no assunto. Em vista do grande interesse despertado por esse livro, decidi sair da letargia dos últimos tempos e também escrever a respeito.

 

Outra questão que me parece digna de tratamento em data próxima é a dos gêneros dos “personagens” dessa pequena fábula.

 

* Acréscimo após a edição. Em vista de alguns comentários recebidos em particular, gostaria de esclarecer que, quando digo “domesticar”, naturalmente estou incluindo todos os seus sinônimos mais ou menos próximos, como amansar, adestrar, amestrar. Também é possível cogitar o verbo conquistar. O verdadeiro problema de um texto como esse não está em encontrar uma tradução, mas em encontrar uma só palavra que sirva para todas as ocorrências, uma vez que essas ocorrências se dão todas dentro de um mesmo paradigma conceitual, e não em momentos diferentes do texto, em que os conceitos implicados sejam distintos.

 

 

 

 

 

Âncora 2
Nota 2: ovinos

Na França, a frase dessine-moi un mouton já foi título de canção e é nome de uma associação de amparo à criança, entre outras coisas. Virou lema, insígnia, ícone, símbolo. Mito? Com essa frase o príncipe acorda o aviador: pede-lhe que desenhe um… mouton. Tradução de mouton? Carneiro, claro.

 

Assim como aconteceu com apprivoiser, se a palavra tivesse aparecido só uma vez, a tradução correria sem sobressalto, e eu não estaria escrevendo isto.

 

 

Mas a história continua. O aviador é mau desenhista, isso ele disse já no começo do livro, então, depois de muita insistência, tenta desenhar a única coisa que sabe, ou seja, um elefante dentro de uma jiboia. O príncipe não quer isso, quer um ovino, um mouton. Aí o aviador desenha isto:

O garoto não se contenta. As orelhas estão caídas, ele diz que o bicho está doente. Aí o aviador faz este outro desenho:

O guri diz que aquilo não é mouton, aquilo é bélier. E nesse ponto a tradutora resolve ir tomar um café.

 

Voltando do café, começa a percorrer dicionários. Se existe um lugar de unanimidade, esse lugar se chama dicionário.

 

Olhando, virando e mexendo, examinando a taxonomia, ela conclui que — não dá outra! — bélier é carneiro.

Diz o Littré no verbete mouton:

 

Bélier châtré que l’on engraisse = bélier castrado para engorda.

 

E logo abaixo:

En un sens plus général, béliers, brebis, et agneaux, réunis en troupeau. Troupeau de moutons = em sentido mais geral, béliers, ovelhas e cordeiros reunidos em rebanho. Rebanho de moutons.

 

Duas conclusões:

  1. mouton é um termo genérico e é também um termo específico;

  2. para definir mouton, o dicionário se vale da palavra bélier nas duas definições, porque mouton, no específico, é o bélier em certo estágio de vida (ou melhor, no estado vitalício de castrado, pobre animal) e no genérico o termo agrega o rebanho todo.

 

Para comparar, diz o Aulete no verbete carneiro, com o que concorda Houaiss:

 

  1. Zool. Denom. comum aos mamíferos da fam. dos bovídeos, do gên Ovis, com sete espécies selvagens e uma domesticada (Ovis aries) no mundo inteiro, que fornece lã e carne. [Col.: carneirada, rebanho, redil.]

  2. Macho da espécie domesticada (O. aries). [Fem., nesta acp.: carneira, marrã, ovelha.]

  3.  

Aqui de novo desfoques, intersecções, e não coincidências. Para os franceses mouton é

  1. o genérico ou

  2. o capão, macho castrado, para o qual não temos nome específico.

 

Portanto, para nós, carneiro é o genérico ou o macho em geral.

 

Vamos combinar que existem três subconjuntos no conjunto ovino lanoso masculino, segundo os franceses: nome genérico, macho castrado, macho não castrado. A coisa se distribui da seguinte maneira nas duas línguas (desenhando para entender):do par

a entender):GenéricoMacho castradoMacho não castradofr.moutonmoutonbélierport.carneirocarneiro (castrado)carneiro

 

Portanto, temos um só nome para três subgrupos, enquanto o francês tem dois, e são esses dois que entram em jogo.

 

Esses impasses são sempre resultantes da complexa dialética entre o mundo e a expressão do mundo, que todos os dias caem no colo do tradutor. Linguística e filosofia, especialmente quando juntas, vêm tratando do assunto há séculos, ainda que nem sempre (é pena) de modo dialético. Humboldt, Trier, Hjelmslev, Cassirer, Sapir, Whorf, Benveniste, todos pensaram de um jeito ou de outro esse tipo de fenômeno. Vejam esta pérola de citação de Hjelmslev:

 

“O ‘cão’ receberá uma descrição semântica complemente diferente entre os esquimós, para os quais ele é sobretudo animal de tração, entre os parses, para os quais ele é animal sagrado, em algumas sociedades hindus, onde ele é rejeitado como pária e em nossas sociedades ocidentais, nas quais ele é principalmente animal doméstico treinado para a caça ou para a vigilância.”[1]

 

Existem inúmeros exemplos desse tipo de coisa.  O caso mouton/carneiro certamente é um deles. Os ovinos, como outros animais, representam para cada grupo humano um conjunto de coisas que, embora as mesmas, são consideradas, classificadas e denominadas de maneiras diferentes. Raças, tipos, utilidades, modos de manejar e conviver, conotações míticas etc. variam de uma sociedade para outra e se refletem no vocabulário usado, que, por sua vez, determina o modo como essas certas coisas são consideradas etc. etc.

 

Esses desfoques semânticos, como eu disse na primeira nota acima, passam despercebidos quando só um dos campos entra em jogo de cada vez, mas, de novo, ao longo da conversa, o príncipe vai fazendo exigências e comentários, embaraçosos para aviadores e tradutores.  De que maneira os tradutores de língua portuguesa se safaram no caso dos ovinos? Só conheço a tradução de Dom Marcos Barbosa, e ele traduz bélier por bode. Mais uma vez, estaria resolvida a questão se… se não existisse o desenho, e se o desenho não mostrasse todas as curvinhas que representam a lã. E bode (que em francês, aliás, é bouc) não tem lã.

 

Depois de vários cafés, a tradutora precisa decidir.

 

As opções que passam pela sua cabeça já cansada são:

 

  1. Carneiro no começo, bode no fim

  2. Cordeiro no começo, carneiro no fim

  3. Cordeiro no começo, bode no fim

  4.  

Pelo que se disse acima, são descartadas todas as opções que contenham “bode”, porque à tradutora em questão parece importante não discrepar do desenho. Excluídas as alternativas 1) e 3), resta a 2), que parece resolver o impasse. E resolveria se… se um terceiro desenho, sem chifres, não fosse recusado pelo príncipe porque o bicho parece velho demais, e ele quer um que viva ainda muito tempo. Ora, o cordeiro é o filhote do carneiro. Como dizer que um cordeiro é velho?

 

E é assim que, no último café, a tradutora opta por ovelha para traduzir mouton.

 

Fiquei sabendo, depois de publicado o livro, que a tradução italiana de Nini Bompiani Bregoli usa pecora (ovelha) para mouton[2]. O italiano tem pecoraagnello ariete/montone, e agnello é cordeiro, nunca é velho. Aliás, a tradução italiana optou por ariete para bélier, o que é de dar água na boca, convenhamos.

 

A opção “ovelha”, se tem a vantagem de criar um bom contraste entre o primeiro bicho do texto e o segundo, tem a desvantagem de introduzir um ser feminino onde havia um masculino. E isso sempre tem consequências. Mas falarei a respeito desse aspecto na próxima nota.

 

Concluo dizendo que o contexto é sempre uma rede de malhas sensíveis: você estica uma delas, e o tecido todo se mexe. O sentido geral de um texto nasce das interações desse conjunto de malhas e da maneira como o leitor as percebe. Se, numa tradução, essas interações forem muito diferentes das do original, o sentido geral colhido pelos leitores do texto traduzido poderá ser diferente do sentido colhido pelos leitores da língua original, e isso é justamente o que os tradutores não desejariam que acontecesse. Mas nem sempre é totalmente evitável.

 

[1] Hjelmslev, La stratification, pp. 175-176, apud Georges Mounin, Les problèmes théoriques de la traduction, Gallimard, Paris, 1963, p. 46.

 

[2] Agradeço a gentileza de Abdalan da Gama, que desencavou essa preciosidade que se encontra aqui.

 

Âncora 4
Âncora 5
Âncora 6
Âncora 7
Âncora 3
Nota 3: gêneros e gêneros

 

A palavra mer é uma dor de cabeça, pois, além de feminina, é homófona de mère, mãe. Lamartine, por exemplo, escreveu um poema chamado Adieu à la mer, em que ele “se entrega ao amor” do mar, pede que este “o acalente” como um filho que “te adora”, declara-se à “vaga” (finalmente um feminino em português) que lhe prepara o “líquido berço”, enquanto a “margem” (rivage, masculino em francês!) admira seu seio (do mar), “molemente agitado”. O poema pode ser traduzido, mas as relações entre os entes antropomorfizados mudam inteiramente. Porque essas analogias, que fazem parte de uma tradição secular na poesia francesa, não existem em português. Com isso, a carga afetiva que circunda toda a fala poética não é sequer intuída pelo leitor da tradução. É assim que se criam ou se perdem nexos.

 

 

Passo então ao Pequeno Príncipe, neste último artigo sobre sua tradução. Nesse livro, ao contrário do que ocorreria na tradução do poema de Lamartine, a tradução acaba criando nexos que não existem no original.

 

 

No caso de minha tradução, a primeira “criação” se dá com a escolha de ovelha em vez de carneiro, tema que desenvolvi em outro artigo. Como bem lembrou Denise Bottmann, em recente comentário, o príncipe se relaciona o tempo todo com seres masculinos. Se bem que — reparo meu — ele tenha vindo de um pequeno planeta, e planeta em francês é feminino. Mas, claro, esse fato é secundário, já que a relação dele com o planeta, pelo menos no que se explicita no texto, não é uma relação humanizada, antropomorfizada. Portanto, partindo da observação de Denise, posso dizer que já logo de cara introduzi um ser feminino onde havia um masculino, numa conversa entre dois seres masculinos (o príncipe e o aviador). Como eu disse, no artigo citado acima, o italiano também fez isso: usou pecora. E, já que estou falando da tradução italiana, também citada no mesmo artigo, em pior situação ficou esse tradutor que foi obrigado a usar o masculino fiore. Ora, a flor é o grande amor que o príncipe deixou em seu (sua?) planeta, e a leitura do texto italiano não deixa de modificar o tipo de nexo existente entre príncipe e flor (no caso, como se saberá mais adiante no livro, uma rosa).

 

Eu, já ciente de que outros percalços viriam pela frente em matéria de gênero, achei que a introdução de uma ovelha onde havia um carneiro (sem chifres ainda) não acarretaria grandes sobressaltos, já que o que o príncipe queria mesmo era um bichinho manso, saudável, novo e sem chifres.

 

Como também notou Denise Bottmann em seu artigo citado acima, os seres masculinos franceses que se transformam em femininos portugueses são: le boa – a jiboiale serpent – a serpentele renard – a raposale papillon— a borboleta. Eu não arrolaria jiboia nem borboleta no assunto: a primeira porque não interage com o personagem, está presente só no começo, quando o aviador conta suas memórias de desenhista fracassado; a segunda porque é apenas citada (a rosa quer manter algumas lagartas, para conhecer as borboletas).

 

Fico só com serpent renard, o que já está de bom tamanho.

 

A serpente era um bicho fino como um dedo. Porém mais poderoso que um rei: informação esta dada pelo próprio bicho (mantenhamos o masculino). Um ser masculino dizendo a um garoto que é mais poderoso que um rei conota, para o interlocutor, poderes diferentes dos sugeridos por um ser feminino que fizesse a mesma afirmação. Nas tramas ficcionais, quando há diálogos, é preciso estar atento para o efeito que o personagem A quer produzir sobre o personagem B com qualquer afirmação. E nesse diálogo o personagem serpente diz ao príncipe que é mais poderoso que um rei. O príncipe ainda não conhece os dotes de seu interlocutor.

 

Acredito que, em relação à serpente, ficam por aí os inconvenientes (se assim se pode chamar) da troca de gênero. De resto, a tradição em língua portuguesa conserva todas as outras características mostradas pelo animal ao longo do texto, de bicho enigmático e sorrateiro, e aí o gênero realmente não causa estranheza.

 

Estranheza mesmo é causada pela relação com a raposa. Já cheguei a introduzir esse tema quando tratei do verbo apprivoiser no primeiro artigo. Assim que se encontram pela primeira vez, o príncipe diz: quem é você? E em seguida: você é bem bonito. Mantive o masculino de propósito. O príncipe não conhecia o caráter feminino do nome do animal que se apresentaria após essa sua observação. As conotações contidas no diálogo que transcorre a seguir, em português, são totalmente determinadas por dois fatores: o gênero da palavra raposa e a tradução do verbo apprivoiser. Remeto ao artigo em que tratei desse assunto para que se esclareça melhor o que direi aqui. Conforme disse lá, durante boa parte do tempo a raposa usa o verbo em seu sentido de domesticar, sentido que a tradução cativar dilui e enriquece com outros ingredientes. Somado ao fato de termos um ser feminino, o uso de cativar introduz indelevelmente, entre o príncipe e a raposa, um nexo masculino-feminino com nuances amorosas. É bem verdade que o próprio texto francês colabora para aumentar essa impressão quando se dá todo aquele diálogo em que a raposa fala dos trigais que lhe lembrarão os cabelos do príncipe, e da sempre mesma hora em que devem ocorrer os encontros dos dois, para ela começar a ficar feliz já antes etc. Essa diferença no tipo de nexo entre os dois não teria muita importância se esses laços (repetindo palavra do diálogo) não acabassem por assumir um caráter muito semelhante ao que já existia entre o príncipe e sua rosa distante. Essa equiparação é que me parece uma, digamos, injustiça cometida pela tradução em relação ao original.

 

Mas que fazer para evitar? Transformar a raposa em raposo? Pode ser, mas aí o tradutor, traduzindo, não traduz, porque raposo soa irremediavelmente raro em português, bem diferente da frequência de renard, que só se iguala à de raposa. Raposo só conhecemos com a roupa formal do sobrenome, em sua vida sorrateira e inerte na floresta dos catálogos telefônicos. E até mesmo os seres masculinos que entre nós se notabilizam pela esperteza, pela manha, pelo ardil, são alcunhados no feminino: Fulano é uma raposa.

 

Não é novo o assunto “diferença de gêneros nas diversas línguas para designar a mesma coisa”. Sobre ele já li coisas interessantes e também ouvi algumas besteiras. A mais memorável, para mim, saiu de uma professora de latim: segundo ela, arbor (árvore) era feminino porque dava frutos. Então me perguntei por que o francês teria transformado seu descendente arbre em masculino e por que cargas d’água flos, que é a flor, da qual sai o fruto, seria masculino, gênero que o italiano herdou, mas as outras línguas latinas, não, pois a muita gente haveria de parecer insano esse gênero latino. Já houve quem perguntasse de que modo hão de pensar a lua e o sol os alemães que inverteram o gênero dos dois astros. Porque essas coisas sempre acabam recebendo atributos humanos entre os povos que costumam dar gêneros a tudo. E é assim que o sol se casa com a lua ou vice-versa, a flor é mulher bonita, exceto para latinos e italianos, e o mar é amante ou mãe dos franceses.

 

E o tradutor que se vire.

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